A leader from the Kuikuro people of Upper Xingu describes how they are fighting the pandemic — on their own.

(artigo em Português abaixo)

ALTO XINGU, Brazil – This year, we won’t celebrate Kuarup, the most important traditional ritual in Upper Xingu, the first indigenous territory demarcated in Brazil in 1961. Through Kuarup we celebrate our dead with dances, fights and painted bodies, and invite guests from the territory and beyond to participate. Eight ethnic groups get together to say goodbye to the departed. But for the first time in history, we will stay in mourning until our ritual can be performed again in the next dry season, in August 2021. Until then we will cry for the many more who will succumb to this new threat.

Well before the coronavirus reached our territories and caused its first death — a 45-day-old baby — the indigenous peoples of Brazil were facing another dangerous threat: President Jair Bolsonaro. He has made clear with his rhetoric that he is against indigenous causes and the environment, and we fear that the president will use this health crisis to let the virus spread and kill many native Brazilians, as happened with the measles outbreak in 1954, still very much alive in our memory.

We, the Kuikuro people of Upper Xingu in Mato Grosso state, are very afraid. We have been left to fend for ourselves by the government, to deal with this disease and protect our people from the pandemic on our own. Here in the Ipatse village we have a small health clinic and one trained nurse to serve 700 people. The nearest hospital equipped with an intensive care unit is 370 miles (600 kilometers) away in Cuiabá, the state capital.

Preventive care is also difficult. We bathe and fish in the Xingu river, but we are not able to drink from its contaminated waters, filled with pesticide runoffs from the soy plantations that surround our territory. To avoid that poison, we use a well and cisterns to cook and clean. We know that this poor infrastructure and the distance to a hospital mean our chances of dying from COVID-19 are double that of other Brazilians.

Our culture is collective. Unlike whites, who think individually, we do everything together — we live in communal houses, we cook, clean, work and celebrate our rituals with the entire village. The only option for us is to isolate together. When we first saw on the news on TV and the internet that the disease was getting close to Xingu, we decided to cut all physical contact with the closest towns and the other villages, and now any travel or visits only happen in extreme cases. An isolation house, built using our traditional techniques and forest materials, will shelter anyone who shows symptoms.

Kuikuro people built a house to isolate those with symptoms

This has only been possible with the support of civil society, such as the People’s Palace Projects, a cultural partner for the past six years. We used to do art exchanges, with foreign artists coming to our village and our artists going to London. Now, this partnership has become entirely dedicated to help us navigate the pandemic. The London based theater company Complicité and its director Simon McBurney also organized a campaign to raise funds so that our association of the Kuikuro people of Upper Xingu, AIKAX, can buy basic food staples, hygiene and cleaning products, protective equipment, fuel for our boats, and generators for the village. This way we don’t need to leave the village to go to shops and businesses in town.

We also launched a tracing app with the support of the Pennywise Foundation, the National Museum of the Federal University of Rio, and a center for scientific and cultural studies of the Amazon, the Emílio Goeldi Museum. Three people in our village were trained to use this simple tool. This way we can monitor who enters and who leaves our village and can isolate for 14 days whoever hasn’t followed the recommendations set by our leaders. If this pilot works, the app could be expanded to the entire Upper Xingu, to help community health agents monitor the vital signs of infected patients remotely. With international help, we are buying hospital equipment, oxygen tanks, masks, alcohol and soap. Not one penny came from the municipal, state or federal governments, or any private entity or large corporation.

We also have the help of archeologists, anthropologists, linguists and medical doctors specialized in Xingu health. They’ve helped us understand the enormity of the risk and learn about prevention. My own work as a filmmaker has helped us develop and share educational campaigns in the Kuikuro language, including audio-visual materials shared within the village, with support of the elders and our chief. But it is still hard for us to accept the cultural differences that this disease is imposing on us.

While we don’t have a cure or a vaccine for COVID-19, chief Afukaká and the president of the Kuikuro Association, Yanamã, recommend that those who are infected not be taken to hospitals and should instead be put in isolation in the village to be treated with the equipment we are acquiring and with the help of our shamans and indigenous medicine.

We don’t want to die and be buried the same way the whites die. Here in Upper Xingu, of the 16 ethnic groups, nine paint and decorate the deceased for a beautiful arrival in the land of the dead. But with COVID-19 infected bodies, we have to abandon yet another ritual of passage. And without the traditional farewell celebration at Kuarup, we are now in a prolonged mourning, and fear that a possible erasure of our history and our memory is under way.

We only ask that we not be forgotten.

Takumã Kuikuro is a filmmaker and a fellow of Queen Mary University of London

This oped was published by Americas Quarterly on 1 July 2020

Read here:  https://www.americasquarterly.org/article/indigenous-brazilians-are-having-to-look-abroad-for-support/

 

POVOS

Obrigados pela pandemia a cancelar a tradicional cerimônia do Kuarup, povos pedem para não serem esquecidos.

ALTO XINGU, Brasil – Este ano não teremos o Kuarup, o ritual mais importante e tradicional do Alto do Xingu, a primeira terra indígena demarcada no Brasil. Durante a cerimônia nos despedimos dos mortos com danças, lutas, corpos pintados e convidados de todo território e de fora dele. Oito etnias se reúnem numa grande festa para dar adeus aos que se foram.

Pela primeira vez na história vamos permanecer de luto até que o ritual possa ser realizado na próxima temporada de seca na região, em Agosto de 2021. Mas até lá tememos chorar ainda mais por muitos que irão sucumbir a mais nova ameaça.

Muito antes do coronavírus chegar aos nossos territórios e causar a primeira morte de um bebê de 45 dias, algo muito perigoso já ameaçava os povos indígenas: o presidente Jair Bolsonaro.  Ele tem deixado claro com seus ataques que é contra as causas indígenas e ambientais e tememos que o presidente se aproveite dessa crise de saúde para deixar o vírus se espalhar entre nós e matar parte da população nativa do Brasil, como aconteceu com a epidemia de sarampo de 1954, ainda muito viva na nossa memória.

Nós, do povo Kuikuro do Alto do Xingu, em Mato Grosso, estamos com muito medo. Fomos abandonados à própria sorte pelo governo para lidar com essa doença e proteger nossos povos dessa pandemia.

Aqui na aldeia Ipatse temos apenas uma pequena unidade de saúde e um enfermeiro treinado para atender até 700 pessoas. O hospital mais próximo que conta com uma unidade de terapia intensiva fica em Cuiabá a mais de 600 quilômetros da nossa aldeia.

A higiene também é mais difícil. Nos banhamos e pescamos no rio Xingu, mas há anos não bebemos da água contaminada por agrotóxicos das lavouras de soja ao redor dos nossos territórios. Para evitar o veneno, temos um poço artesiano e caixas d’água na aldeia para cozinhar e fazer limpeza básica. Sabemos que por conta da falta de infra-estrutura e da distância da rede hospitalar a nossa chance de morrer de Covid-19 é o dobro da do resto dos brasileiros: 12,6%

A nossa cultura também é coletiva. Diferentemente dos brancos que pensam individualmente, nós fazemos tudo juntos- vivemos em grandes casas comunitárias, cozinhamos, comemos, trabalhamos e celebramos nossos rituais com toda aldeia.

O que nos resta fazer agora é nos isolarmos juntos.

Quando recebemos as primeiras notícias pela TV e pela Internet de que a doença estava se aproximando do Xingu, decidimos cortar todo contato físico com as cidades mais próximas e com outras aldeias e as viagens e visitas agora só são permitidas em situações extremas.  Uma casa de isolamento, construída de forma tradicional com material da floresta, vai abrigar quem apresentar qualquer sintoma da doença.

Mas isso só foi possível com as nossas parcerias com a sociedade civil, como a ONG britânica People’s Palace Projects, com a qual há seis anos fazemos intercâmbios culturais entre indígenas e artistas estrangeiros. Eles, com ajuda de uma companhia de teatro de Londres, a Complicité, fizeram uma campanha para arrecadar fundos para a nossa associação AIKAX. Com o dinheiro nós pudemos comprar cestas básicas, produtos de higiene e limpeza, EPIs e combustível para os nossos barcos de pesca e para os geradores da aldeia. Assim não precisamos frequentar o comércio da cidade. Nos Estados Unidos contamos também com a campanha liderada pela Penny Wise Foundation que nos permitiu comprar equipamentos médico-hospitalares como EPIs e concentradores de oxigênio.

Com apoio do Museu Paraense Emílio Goeldi, Museu Nacional da UFRJ, Universidade da Flórida e Instituto Puentes lançamos o primeiro aplicativo indígena de rastreamento e monitoramento da nossa população. Três moradores de nossa aldeia foram treinados para usar essa ferramenta simples instalada em telefones celulares.  Assim podemos controlar quem entra e quem sai da aldeia e isolar por 14 dias na casa de quarentena quem não seguiu as recomendações de nossas lideranças.

Se o piloto der certo o aplicativo poderá ser expandido para todo Alto do Xingu, para que agentes de saúde de fora das aldeias consigam monitorar remotamente os sinais vitais de pacientes infectados aqui dentro. Com esse apoio internacional estamos comprando equipamento hospitalar, tanques de oxigênio, máscaras, álcool gel e sabão. Nada veio dos governos federal, estadual ou municipal ou de qualquer grande corporação e empresa privada.

Para salvar vidas, contamos também com a apoio de arqueólogos, antropólogos, linguistas, indigenistas, médicos especializados em saúde xinguana. Com eles entendemos os riscos que corremos e aprendermos mais sobre a prevenção.

Meu trabalho como cineasta tem ajudado na divulgação de campanhas educativas na língua Kuikuro com material audio-visual dentro da aldeia com engajamento das lideranças e do nosso cacique. Mas ainda temos dificuldade em aceitar as diferenças culturais que estão sendo impostas por essa nova doença.

Enquanto não houver cura ou vacina contra a Covid-19 o cacique Afukaká e o presidente da Associação Kuikuro, Yanamã, recomendam que os infectados não sejam encaminhados aos hospitais e fiquem na aldeia em isolamento para serem tratados com os equipamentos que vão adquirir e com a medicina indígena dos pajés da comunidade.

Nós não queremos ser mortos como morrem os brancos.

Aqui no Alto do Xingu, das 16 etnias, 9 pintam e enfeitam os corpos para que a pessoa chegue bonita ao mundo dos mortos. Mas com os corpos infectados pela Covid-19 teremos de abandonar mais um rito de passagem tradicional. E sem a despedida final do Kuarup vivemos agora um luto prolongado com o temor de um possível extermínio da nossa história e da nossa memória que pode estar por vir.

Só pedimos para não sermos esquecidos.

Takumã Kuikuro é cineasta e fellow da Queen Mary University of London

O artigo foi publicado pela Americas Quarterly no dia 1 Julho 2020

Leia aqui: https://www.americasquarterly.org/article/indigenous-brazilians-are-having-to-look-abroad-for-support/