Por Profa. Dra. Ivone de Lourdes Oliveira do XVIII Congresso Abrapcorp

 

(Atenção spoiler!)

 

Curitiba, maio 2024 – Ao assistir o documentário VALE? recorri à expressão francesa magnifique, para manifestar meu encantamento, uma vez que ela consegue anunciar muito bem o meu sentimento, o mesmo quando assisto um bom concerto, um bom show, uma boa peça de teatro. O filme é uma obra de arte que aborda as tristezas, os sofrimentos das comunidades atingidas pelo rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho. São imagens agressivas e tristes que contrapõem à beleza artística da obra. Se fosse para dar um título ao filme eu escolheria “Luta contra o silenciamento, o apagamento e o esquecimento” uma vez que o documentário mobiliza a lembrança do acontecimento que destruiu a vida comunitária, as relações sociais, o comum cotidiano, o sentimento de pertencimento, enfim a história das pessoas e reacende a memória. O filme tocou o meu coração profundamente, porque além de ser mineira, vivo perto do quadrilátero ferrífero, sou pesquisadora sobre a temática. Parabenizo a diretoria da Abrapcorp por abrir espaço para a apresentação do documentário, instigando a reflexão sobre comunicação, organização, arte e cultura, tema do Congresso.

No início, com a sequência de imagens impactantes do rompimento, o filme ressalta o contraste entre a hostilidade da mineração e o brilho das hematitas no chão como se fossem um tapete de luz e prata, enfatizando a violência da atividade extrativista e indicando de forma figurada o que se experimenta nos territórios explorados. Isto é arte, impacta ao mesmo tempo que conscientiza já vez que toca o coração das pessoas. Uma bela estratégia de comunicação, que a partir de manifestações artísticas como teatro, música, banda, circo, sons estabelece processos interacionais mais intensos, além de resgatar memórias para não deixar cair no esquecimento o maior drama humano vivido em Minas Gerais.

O filme enfatiza a força da religiosidade em Minas Gerais e comove com a sequência de imagens do cotidiano das cidades onde a mineração opera, ou seja os trabalhadores indo para o trabalho, a movimentação de caminhões e cargueiros carregados de minério, a vida pacata ao mesmo tempo que toca a música Ave Maria de Gounod. Não há ninguém que não se emocione com a mensagem! Outro plano comovente é do padre rezando a Ave Maria no auto falante da igreja ao mesmo tempo que as imagens da lama tomamando conta dos lugares compõe plano. De forma simbólica mostra a brutalidade da mineração em contraposição à fé do povo mineiro e evidencia a religiosidade como uma riqueza artística e parte da cultura de Minas Gerais.

Trabalhando com cinco artistas do quadrilátero ferrífero, os diretores do documentário buscam, a partir da arte, transformar a dor e o luto como uma forma de resistir e lutar pela justiça social e por um mundo mais humano e consciente. Lucas Fabrício fala do teatro e convida a comunidade para assistir sua peça, reforçando a ideia de que o teatro é uma realidade já que traz para o palco coisas vividas e coisas que ainda podem ser vividas. O teatro reaviva a consciência da tragédia-crime em cena. Lembrei-me muito do teatrólogo Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, que propunha encenar as coisas vividas e o cotidiano em pequenas sketchs como uma forma de envolver o sujeito no processo de conhecimento e de conscientização de uma realidade, que vai se apagando, na medida que vai sendo vivida.

Os sons vivos do pilão e dos instrumentos tocam o fundo d’alma e mostram sua potência de ressignificação ao mesmo tempo que os sons do rompimento das barragens revelam a conexão existente entre a lembrança, a memória e a ancestralidade. Impressionante o momento em que o ator Rei Batuque está falando sobre os os sons e de repente escuta o som do cargueiro, o que o transporta imediatamente para o acontecimento doa rompimentos e fala “A Vale matou e assassinou muita gente”. Trago para nos ajudar a refletir Bruck e Vargas (2020, p.301) ao afirmarem que “A memória é uma forma de viver e de refazer o passado, de lembrar fatos ocorridos e de sentir, no presente, as condições que dão sentido a uma vida. Trata-se de um modo de configurar a identidade de alguém ou de uma comunidade, um jeito singular de habitar o espaço e, ainda, de projetar expectativas para o futuro”.

A figura da palhaça Jojoba passando batom, arrumando-se com roupas coloridas e tocando o instrumento no escuro da Passagem de Mariana nos leva para os movimentos circenses, o que tem relação direta com as cidades do interior de Minas Gerais. Seus gestos são carregados da magia e da alegria do circo e sugerem que os sonhos transformam. A arte teatral é transformadora e eu relacionei a sequência de imagens com a Commedia dell’Art pela analogia com o popular, com a rua, com a diversão e com a tomada de consciência.

A banda também é um símbolo das cidades interioranas, com grande influência na cultura mineira. Ela reúne pessoas, reaviva a memória as lembranças, e consequentemente a resistência, ao mesmo tempo que leva à fruição. A. sequência das imagens da banda e dos músicos evidenciam o embate entre a delicadeza e harmonia dos sons dos instrumentos e a desumanidade das minas. Não precisa de palavras, as imagens escolhidas reforçam a ideia de que apesar da mineração roubar a riqueza e a história das cidades interferindo na cultura não consegue apagar a essência da mineiridade, as raízes comunitárias e culturais. Aí está o tensionamento entre memória e história que distingue a dimensão de um acontecimento e as marcas do sofrimento. A luta é para que o lugar onde vivem e constroem a vida comunitária esteja sempre vivo.

No jogo temporal de passado-presente-futuro o filme trabalha a memória. A composição musical “Vale a pena” do rapper Thiago SKP é arrebatadora, pois representa um agir político e um ato para impedir o esquecimento e apagamento de um crime ambiental que tirou a vida de pessoas, destruiu moradias, sonhos e histórias, ou seja uma forma de resistência e de luta contra a impunidade da mineração. Seu rap retrata os sentimentos das pessoas que vivem e trabalham na mineração e a ambiguidade que experimentam, pois como foi dito, está presente na comunidade uma relação de alegria e dor pois ao mesmo tempo que a mineração traz empregos, traz também a destruição. Itabira é um exemplo disto e o rap revela bem esse sentimento, além de falar sobre o medo dos moradores com o que vai acontecer com a cidade após a exaustão da mina. A música denuncia a verdade: a Vale está interessada em extrair minérios, ter altos resultados econômicos e não se interessa pelo sofrimento das pessoas e pelas perdas provocadas pelo ato de minerar.

Termino meu comentário ressaltando a beleza artística da sequencia de imagens de encerramento, quando novamente toca Ave Maria de Gounod enquanto mostram as imagens estarrecedoras da lama destruindo tudo. É arrepiante e me levou ao pensador Ricoeur (pp. 436-437) quando declara: “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”. A sequência apresentada nos tira da inercia, reacende a esperança de salvar o mundo de uma escravidão contemporânea, de não desanimar diante do poderio econômico e lutar pela liberdade dos homens, subjugados à lógica neoliberal.

Profa. Dra. Ivone de Lourdes Oliveira/ Programa de Pós-graduação em Comunicação Social -Puc-Minas.

Referências

Bruck, M. S; Vargas, H. (2020) Narrativas da memória como dispositivo: A Sirene e a luta contra o esquecimento. Matrizes v.14, n. 2, São Paulo.

Ricoeur, P. (2007). A memória, a história e o esquecimento. Ed. Unicamp.

O filme Vale? faz parte do projeto de pesquisa Raizes de Resilencia