Reflexões sobre a COP28 em Dubai

Por Yula Rocha e Thiago Jesus

Dubai, UEA , Dezembro de 2023

A cultura – arte, património e indústrias criativas – ainda não ocupou o centro das discussões climáticas, nem nas mesas de negociações que culminaram com a fraca mas importante declaração final dessa COP28, nem tampouco na pauta da imprensa presente em Dubai. Mas, embora a cultura tenha passado à sombra dos holofotes, deixamos a COP com esperança graças aos avanços importantes com a criação oficial do Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura.

Em reunião histórica no dia 13 de dezembro na COP em Dubai, articulada pela People’s Palace Projects e parceiros e co-presidida pela Ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes, mais de 30 ministros ou representantes governamentais*, organizações intergovernamentais, incluindo a UNESCO e a União Europeia, e uma grande delegação de defensores culturais reconheceram o papel fundamental da cultura para uma ação climática transformadora.

Os participantes aprovaram por unanimidade a Declaração dos Emirados sobre Ação Climática Baseada na Cultura. Esta Declaração visionária abre caminho à adoção de um grupo de trabalho conjunto sobre Ação Climática Baseada na Cultura na COP29. O grupo terá então mais um ano de trabalho para apresentar seu plano de ação no Pará, durante a COP30.

*Os países que aderiram ao Grupo de Amigos incluem: Emirados Árabes Unidos, Brasil (co-presidentes), Bahrein, Bulgária, Chipre, República Democrática do Congo, Egito, Alemanha, Gana, Grécia, Iraque, Itália, Jordânia, Kuwait, Líbano, Mali , Malta, Paquistão, Sérvia, Senegal, Seicheles, Espanha, Síria e Uganda.

Mas como a cultura pode ser uma ferramenta importante de ação climática?

 

Neste ping-pong, Yula Rocha, gerente de comunicação da PPP e meu colega Thiago Jesus que lidera os projetos climáticos e Indígenas na organização, refletem sobre o assunto. Gostaríamos muito que vocês entrassem nessa conversa.

Parte deste papo foi publicado no UOL, pelo MediaTalks (páginas 25 e 26) https://mediatalks.uol.com.br/especiais-mediatalks/edicao-especial-cop28.html

Como a cultura pode ser instrumento de mobilização/conscientização? 

Yula:  “Se não se pode vencer pela razão, que seja pelo coração”. Diante dessa emergência climática, a arte é um poderoso instrumento coletivo de transformação cultural e política capaz de tocar as pessoas emocionalmente e promover mudança de comportamento do público. Há décadas os cientistas, baseados em evidências contundentes, estão nos alertando sobre um provável fim catastrófico da humanidade se nada for feito para frear a destruição do planeta. Mas a ciência ainda não conseguiu convencer o mundo de que é preciso agir. Aí entra o papel da arte. Teatro, música, cinema, artes plásticas, moda, novela, literatura, poesia, rap são veículos importantes para endereçar a crise climática e despertar a emoção de quem está consumindo cultura e consequentemente fazer com que as pessoas acordem para o problema. E quando se fala da manifestação artística à serviço da crise climática, não estamos falando de uma arte panfletária, o ativismo ambiental pode ser subliminar em uma exposição ou poesia por exemplo, através de um personagem de um livro ou novela, nos levando a pensar a respeito e a agir cobrando mudanças dos políticos e empresas poluidoras e fazendo nosso dever de casa como cidadão. 

Mas pra isso precisamos de políticas que reconheçam e fortaleçam o trabalho cultural feito no mundo todo por artistas locais, ativistas, comunidades indígenas. Eles estão diariamente promovendo mudança com sua arte.

Thiago: A crise climática é uma crise cultural. Ela não é apenas um desafio ambiental, financeiro e científico, mas também um desafio cultural que exige uma transformação profunda na maneira como nos relacionamos entre nós e com o planeta. Nós já entendemos que alimentar as pessoas somente com dados científicos e notícias, não leva à ação. Ao contrário, faz as pessoas se sentirem ansiosas, sobrecarregadas, sem esperança, sem saber o que fazer.

 O escritor indiano Amitav Ghosh diz que a crise climática é uma crise de imaginação, por que não conseguimos nem entender a complexidade do problema, nem imaginar como vamos superá-lo. Precisamos construir urgentemente um consenso cultural para ação orquestrada, guiada por um profundo respeito à ciência, para transformar atitudes, narrativas e práticas culturais. E, como a Yula disse, a cultura, as artes, o entretenimento, desempenham um papel muito poderoso em nossas vidas e podem ser nossos maiores aliados nessa transição.

A crise climática é consequência das relações que estabelecemos com o mundo de crescimento sem freio, lucro e produção constantes, mobilidade infinita. A maneira que vivemos hoje é enraizada nos projetos colonizadores e capitalistas que exploram a natureza e as pessoas. Nós precisamos superar essa dimensão cultural. A ativista e jornalista Adrienne Maree Brown diz que habitamos um mundo imaginado por pessoas que consideravam a disparidade econômica e a destruição ambiental custos aceitáveis pelo seu poder. É nossa responsabilidade imaginar outros futuros. A arte é uma ferramenta poderosa para desafiar o status quo, e é através da cultura que damos valor às coisas. E, por cultura, quero dizer a maneira como damos sentido às coisas através de nossos estilos de vida, atitudes, música, poesia, literatura, museus, nosso patrimônio cultural, festivais, moda, línguas. Nós compartilhamos isso tudo coletivamente, mas de maneira muito íntima, pessoal e profunda. Eu acredito que essa é a chave. É a transformação interna, que acontece em nosso coração, que vai transformar sistemas, estruturas e modelos econômicos.  

A arte e a cultura finalmente entraram nas discussões da COP28 em Dubai e devem cada vez mais assumir protagonismo para influenciar políticas públicas.

Thiago: O papel da cultura – as artes, o patrimônio e as indústrias criativas – sempre foi negligenciado nas políticas climáticas. A primeira vez que foi mencionado, através da inclusão de ‘patrimônio cultural’ nas declarações oficiais sobre ‘perdas e danos’ e ‘adaptação’, foi no ano passado, na COP27 no Egito. Essa COP28 teve uma importância significativa para a cultura com a maior presença de vozes do setor de todas as cúpulas. Artes, Cultura e Patrimônio foram temas de apresentações em diversos pavilhões, e vimos a inauguração dos pavilhões Entretenimento + Cultura e Storytelling for Action.

Mas acredito que o passo mais importante foi a Reunião Ministerial de Alto Nível, que aconteceu no dia 13 de dezembro em Dubai, co-presidida pela Ministra da Cultura, Margareth Menezes. A reunião consolidou o Grupo de Amigos para Ação Climática Baseada na Cultura que se comprometeu a advogar pela adoção de uma Decisão Conjunta sobre Cultura e Ação Climática na COP29. Se bem-sucedida, essa adoção deve iniciar uma consulta de um ano sobre questões relacionadas às artes, cultura e patrimônio como impulsionadores da ação climática, que poderá culminar na adoção de um plano de trabalho inédito da UNFCCC na COP30 no Brasil, reconhecendo a cultura como um pilar indispensável para ação climática em nível global. Esse pode ser um dos grandes legados do atual Ministério da Cultura.

Em paralelo a isso, foi lançada uma Chamada Global para colocar a cultura no coração da ação climática (https://www.climateheritage.org/jwd). Esta é uma campanha para nós, sociedade civil, que trabalhamos na cultura e em outras áreas também, para criar conscientização e mobilização para que os governos de nossos países reconheçam a importância da cultura nas soluções climáticas. A People’s Palace Projects do Brasil é uma das signatárias fundadoras, junto com o ICOM (Conselho Internacional de Museus), ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), entre outros grandes agentes globais. A campanha será mobilizada até obtermos a aprovação da ‘Decisão Conjunta sobre Cultura e Ação Climática’.

Como as expressões artísticas brasileiras podem ser importantes e transformadoras? 

Yula: O Brasil é um ator importante nas discussões climáticas, por motivos óbvios, e quer ser um interlocutor indispensável até a COP 30, que será sediada no coração da Amazônia, o Pará. Não levar para mesa de negociação o poder de persuasão da nossa riquíssima cultura brasileira, seria um desperdício. Temos uma capacidade ímpar em influenciar o mundo a pensar soluções para questões ambientais.

Thiago: O Brasil é um país muito rico culturalmente, complexo e múltiplo, de proporções continentais e expressões artísticas muito diversas. E os impactos climáticos e ambientais aqui são vividos e interpretados de maneira muito desigual por diferentes comunidades, lugares e gerações. Eu penso que através dessa multiplicidade podemos contribuir muito para conversas globais. As práticas culturais são fundamentalmente adaptativas; são respostas que damos à constante mudança ao nosso redor. Elas são um processo contínuo de sentir, ajustar e re-imaginar a nossa relação com o nosso redor.

 Por exemplo, nós realizamos um projeto com organizações artísticas na região do Quadrilátero Ferrífero em Minas Gerais. A expressão artística dessas comunidades é profundamente atravessada pela relação do ambiente com a mineração. E elas lidam diariamente com o risco iminente de rompimento de novas barragens de rejeitos. O que podemos aprender sobre adaptação e pela resistência com elas? Qual a capacidade dos valores culturais e tradições locais de proteger os patrimônios, e fortalecer a resistência dessas comunidades contra os crimes ambientais?

(leia sobre o projeto Raizes de Resiliencia)

Um outro exemplo são os povos indígenas. Nós colaboramos com artistas do Alto Xingu. O Xingu é um dos territórios mais diversos culturalmente do mundo. Ao mesmo tempo é uma das principais barreiras para o desmatamento na Amazônia. A fronteira do Xingu é chocante: um deserto de monocultura da soja de um lado, multiplicidade cultural e floresta em pé do outro. 80% de toda a biodiversidade do planeta está em territórios indígenas. Como a cultura dos povos indígenas se contrapõe à cultura extrativista que criou a crise climática? Qual a relação entre os conhecimentos tradicionais e a preservação da Amazônia?

Na COP28, eu e Piratá Waura (cineasta indígena e professor local do povo Wauja do Alto Xingu) apresentamos o projeto sobre a gruta do Kamukuwaká, patrimônio cultural sagrado dos povos Alto Xinguanos que teve seus petróglifos destruídos em uma tentativa de apagamento cultural e desapropriação das terras. 

Piratá e os Waujá lideraram uma aliança internacional de artistas e pesquisadores que recriaram os petróglifos digitalmente com base na memória coletiva dos Wauja, construíram uma réplica em tamanho real da gruta restaurada (8 x 4 x 4m) e desenvolveram uma realidade virtual para as escolas em quatro aldeias. Tudo isso para que garantir que o conhecimento tradicional da gruta, fundamental para a integridade cultural Wauja, continue sendo passado para as futuras gerações de líderes indígenas.

Em abril de 2024, a comunidade vai finalmente receber a réplica dessa caverna. Eles construíram um centro cultural e de monitoramento territorial que vai abrigar a gruta, e já estão realizando rituais que não faziam há décadas em preparação para esse momento. Esse “museu” Wauja vai tanto celebrar os conhecimentos ancestrais quanto produzir conhecimento sobre mudanças ambientais no ar, na água, incêndios, desmatamento. Para os povos indígenas, cultura e preservação são uma coisa só.

(leia sobre o projeto da Gruta Sagrada do Kamukuwaka)

Portanto reforço, as respostas às mudanças climáticas têm subestimado o imenso valor da integridade cultural, que é a capacidade dos valores, crenças, tradições culturais, de proteger comunidades e lugares, de se adaptar, e de mobilizar soluções. Nós temos muitos exemplos no Brasil de soluções climáticas baseadas na cultura que oferecem caminhos para um futuro mais justo e de baixo carbono, mas precisamos reconhecer o poder da cultura e da arte nesse âmbito e criar mecanismos, financiamentos, políticas públicas culturais climáticas para isso.

Como o jornalismo e as empresas podem abraçar essa idéia?

Yula: Primeiramente, eu acredito que a imprensa ainda não dedica espaço necessário para uma cobertura da importância que a crise climática merece, portanto precisamos falar sobre o assunto não apenas uma vez por ano durante a COP, mas todos os dias, ocupando mais espaço na mídia. E creio também que a mudança de uma narrativa apocalíptica para um tom mais otimista seja o caminho para gerar mais engajamento do público, especialmente das mulheres e dos mais jovens que têm se afastado do tema afetados pela ansiedade climática. Dar o protagonismo para quem está na linha de frente dessa luta climática como os povos Indígenas e as comunidades mais vulneráveis do sul Global é também parte do compromisso de conscientização sobre as injustiças climáticas, porque nem todos estão sendo afetados pela crise igualmente 

A minha esperança é que o jornalismo e as empresas também entendam que o setor cultural e a arte são importantes aliados nessa caminhada. Os cientistas precisam do poder da arte e das manifestações culturais para gerar mudanças coletivas e individuais nas políticas públicas e pressionar para que governos e empresas se comprometam com a urgente redução de emissão de poluentes seja implementada. Mas como abraçar essa ideia? A imprensa tem papel fundamental na formação da opinião pública,  cobrindo e divulgando expressões artísticas climáticas e dedicando espaço para o tema.  Já as empresas que têm o poder capital, devem apostar no financiamento de manifestações artísticas e pensar com o setor cultural como podemos facilitar exposições, festivais de cinema, produção de filmes, documentários, realidade virtual, livros, workshops e atividades com público que explorem o tema da emergência climática. Não estamos falando em instalar painéis solares em museus, mas em fazer o uso da arte como uma ferramenta de transformação de mentes. E a arte tem o poder coletivo e de despertar os indivíduos  sobre a necessidade de salvar o que ainda resta do planeta.